domingo, 3 de maio de 2009

uma noite na chapada

Não lembro exatamente o dia, lembro-me apenas que era um fim de semana de feriado prolongado. Carros transitavam pelas ruas da vila de São Jorge. Nas trilhas, penetravam turistas avidos a consumir 4 dias d'uma natureza de incrível beleza e fragilidade. Pousadas que, construídas com a compra barata dos terrenos antes pertencentes aos garimpeiros, convidavam o dinheiro dos brasilienses a encherem o bolso dos donos que moram em outras localidades.

Era sábado e a vida calma dos mais de vinte dias que estavamos naquela vila incomodava quem nao suportavam mais a convivência consigo mesmo. Nós, esperavamos aquele fim de semana como se fosse a salvação de algo que nem sabíamos o que era, mas esparávamos. A idéia era ficarmos o início da noite na Casa de Cultura, dançando músicas brasileiras típicas de bares que querem agradar os turistas que se dizem amantes da cultura nacional. Erraram, e o que os visitantes quiseram foi a banda de ragge seguido de uma rave no meio do cerrado. Lucas e eu iríamos nas duas, claro.

Passei na casa em que estava hospedada para escrever uma das longas mensagens de celular que foram enviadas naquela noite, Lucas entra no quarto e me convida insistentemente a conhecer o bar que ele encontrara. Eu, com a grosseria que nunca me falta, respondi:

-Já vou moleque, espera um pouco.

Ele disse-me para procurá-lo onde estivesse o som, e apenas estas palavras bastaram para que eu pudesse encontrá-lo.

Demoro uns dez minutos e quando começo a me situar, ainda do lado de fora, vejo pela janela o Lucas dançando com os olhos fechados na sala de uma casa onde fora montada a pista de dança. Entro e percebo as paredes cor-de-rosa desbotado, não sei se pelo tempo ou pela qualidade da tinta; a luz não era suficientemente clara para inibir aqueles que sentem vergonha em dançar em público nem escura a ponto de posibilitar contatos mais ofegantes entre os adolecentes.

Nas noites de festa se retiram os sofás, colocam-se as mesas de lado e enchem a geladeira com bebidas a serem vendidas durante a noite. Tentou-se um balcão para apoiarem os cotovelos. Na porta do banheiro uma cortina feita de miçangas azuis e no chão um mosaico colorido que desenhava uma flor, o rosa na parede continuava.

Na porta, em que se da o transito entre a sala e o interior da casa, uma senhora de blusa branca, saia azul, coque despenteado e pés descalsos. Certamente era a proprietária.

À frente da sala estava o músico com seu teclado e o microfone. Um sujeito simples, mas aclamado pelo público a cada música. O repertório, pouco variado, trazia em ritmo de forró músicas como “créu”, “cada um no seu quadrado” e outras da mesma categoria, todas interpretadas por “Robinho dos Teclados”.

Os adolecentes, com a energia que lhes são características, pulavam e gritavam com suas roupas justas, curtas e de cores vivas; nos pés, vestiam sandalhas pretas com fivelas douradas, como aquelas vistas nas prateleiras de brechó ou as encontradas entre as poças depois da madrugada. Os dedos, sempre com esmaltes sintilantes, saiam e abracavam as palmilhas chegando quase tocar o chão, sobra sempre sandalha no calcanhar.

Em seguida começavam as músicas românticas. Lucas e eu decidimos tirar um par para dancar. Ele tirou uma garota de estatura baixa, um pouco inchada, nao chegava a ser gorda, pele queimada de sol, cabelo escuro preso e laranjado nas pontas. Eu tirei um rapaz alto, bem moreno, corpo desenvolto e cheiro forte de suor. No fim da primeira música romântico-cafona nossos pares nos soltaram, a impressão que deu foi que estavamos infringindo alguma regra, eramos os únicos turistas, e algumas pessoas nos observavam de canto de olho.

Terminou a apresentação, e, ao mesmo tempo que os adolecentes gritavam pedindo a volta da música, aparece uma senhora bem velhinha que carregava um cestinho de palha, como aqueles que existem nas igrejas católicas para os devotos doarem dinheiro, recolhendo o mísero pagamento do músico.

Volta a música, agora um techno-brega daqueles que ficam gravado no teclado, e os adolecentes cantavam gritando e pulavam incansavelmente. Ficamos em dúvida se a aclamação era mesmo para o Robinho ou apenas para a música. Dançamos o rit do momento “não vale mais chorar por ele, ele jamais te amou...”

Caminhamos para a rave.



mais ou menos assim...

quarta-feira, 22 de abril de 2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

um pouco de Doroty






Desde o primeiro dia que cheguei na Chapada dos Veadeiros sinto vontade de escrever sobre ela. Iniciei varios textos mas todos pararam no lixo. A minha ideia era falar um pouco sobre essa mulher grandiosa, mas a força que ela traz consigo impediam qualquer reducionismo que minhas palavras certamente fariam. Gostaria eu de ser por um momento uma escritora para que talvez eu conseguisse traduzir com palavras o que essa mulher é e representa, mas essa característica me passa longe, e meus dizeres sempre expressarão menos. Não é exagero, só existe uma maneira de entender: conhecendo-a. O que vem abaixo são só algumas palavras bem aquém do que de fato eu gostaria.


Doroty Marques, descendente dos guaranis, “véia braba”, provocadora, ética, questionadora.


Com os longos cabelos brancos esvoacantes, passa todas as manhas pelas ruas de São Jorge com sua viola. Unhas compridas, voz rouca e grave, 63 anos, ariana.


Prêmio na UNESCO, prêmio Sharp, trabalho com crianças, arte, natureza e educação. CDs impecáveis: “Monjolear”, “Cantos da Mata Atlântica”, e outras obras gravadas com aqueles que fizeram parte de seu projeto, o “Turma que Faz”, que há anos corre cidades do país. Ensaia com mais de 70 criancas o próximo álbum que sera gravado em maio, aqui, na Chapada dos Veadeiros, em meio às cachoeiras, plantas e animais. Sim, ela vai montar um estúdio a céu aberto dentro do Parque Nacional.


“Véia da Lua”, levou 200 crianças, 100 da rua e 100 da favela, para morar com ela na Serra da Mantiqueira. Invadiu um banco, “com mais de 2 mil neguinho tocando tamor, porque eu invado é com arte, não com violência”, e fundou um centro de cultura numa cidade do interior do Mato-Grosso. Levou seu projeto pro Acre e precisou sair da terra de Xico Mendes pois fora ameaçada pelos mesmos que o assassinaram.


Fugir era rotina, desde pequena não parava mais de 3 meses em uma cidade, pai índio, curandeiro num período em que remédio de ervas era proibido e que teve ate a SIA em seu pé quando vendeu propositalmente a fórmula errada de um remédio para um banco em MG. Nessa fuga Doroty precisou atravessar a nado com o pai, a mãe e os dois irmãos menores o rio que divide o Brasil do Uruguai. Foi perseguida na década de 70 por enfrentar a ordem imposta pela ditadura. Lancou seu primeiro CD, o Semente, que questionava esse período político. Hoje não canta mais, o cigarro em excesso afetou as cordas de sua garganta.


Sua idéia é simples: ser como um beija-flor, que viaja rápido e é tão pequeno que o gavião não desperdiça seu mergulho, porque se ele sentir vontade e mergulhar o vôo sera certeiro.


Ter passado esses dias próxima a essa mulher foi um presente. Doroty Marques é forte, ética, coerente, guerreira, corajosa, características adormecidas na grande maioria das pessoas. Sao 63 anos vividos com muita intensidade, suas histórias sao incríveis e essas são as melhores horas em São Jorge.


Claro que também tem as cachoeiras!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

trilha do imperador

foto: Camila Pierobon




Dias intensos nos esperavam. Recebemos um convite para conhecer Grajauna, região da Estação Ecológica Juréia-Itatins que possui uma das mais preservadas áreas de mata atlântica do país e habitada pela família do Prado há cerca de 400 anos.


Dezoito quilômetros de areia separam a Estação Ecológica do lugar onde estamos. Existia a possibilidade de fazermos a trajetória a pé, como muitos já fizeram, mas esta idéia foi logo descartada. Todos esses quilômetros de areia mais três horas de caminhada no morro desencorajavam a duas urbanitas acostumadas a carros, ônibus e metrô.


Com Piau no volante fomos enchendo o carro com todos os que subiriam a trilha. É tempo de fazer farinha, a casa da matriarca precisava dos filhos e netos para a atividade. Primeiro Dalva e Pedro, seguidos de Glória e Heber, na areia, Marquinhos.


Era aproximadamente sete e quarenta da manhã, a maré ainda baixava e a possibilidade de atolarmos diminuiu, mas nunca chegou a se extinguir.


Na entrada da Estação nos despedimos de Piau e iniciamos a caminhada. Velozes, as mulheres logo assumiram a ponta e sumiram de nossas vistas, ainda tinham a roça de mandioca.


Os garotos, atenciosos que são, nos faziam companhia e nos mostravam as plantas, insetos, pegavam frutas para provarmos, faziam copos com a folha do caitê demonstrando domínio e conhecimento da natureza de onde nasceram. Já o conhecimento de história, mostravam explicando a origem londrina dos postes de telégrafo que encontrávamos no caminho trazidos na época do império.


Na trilha da verde mata cheiros, sons, cores aguçavam nossos sentidos. Mata fechada, mata aberta, cantos de pássaros, milhares de mosquitos, borboletas, aranhas, umidade, um forte aroma de baunilha, minha maior descoberta, a essência de baunilha vem de uma orquídea encontrada na mata atlântica.


Quarenta minutos e termina a primeira subida, o corpo começa a se acostumar com a caminhada. Descendo, sentíamos o músculo próximo ao joelho. O primeiro descanso, uma parada rápida na cachoeira que estava a vinte metros do mar. Mais duas cachoeiras, a segunda subida, curvas, muitas curvas, a segunda descida, chegamos no Rio Verde. Faltava apenas uma hora de caminhada, mas agora numa estrada reta. No caminho mais mosquitos, frutas e uma cobra que curiosa peguei na mão.
por: Camila Pierobon

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

o fazedor de rabecas

foto: Camila e Fiorela
Caiçara do pé gordinho e chato.

Infância onde hoje é a Estação Ecológica Juréia-Itatins, poucas crianças, muita mata.

Pai aos 21 anos, brincalhão, divertido, zombador; ainda moleque aos 29.

Sério e consciente de sua condição e posição quando se trata das questões políticas locais. Membro da Associação dos Jovens da Juréia desde o início da adolescência.

Fazedor de rabecas. Um cuidadoso e apaixonado fazedor de rabecas. Escolhe minuciosamente a caxeta, o cedro e a canela que só servem se forem cortadas na lua minguante e em meses que não possuam a letra ¨r¨ no nome para que não rachem e não dêem bicho.

Guardador de lendas da Barra do Ribeira e da Juréia. Curioso e atento aos espíritos que passam e algumas vezes movimentam as janelas e portas da oficina.

Também fazedor de viola caiçara e sozinho, observando, aprendeu os ponteios. Compositor de 11 músicas que a timidez impediu de mostrar.

Amante e tocador de fandango.

Cleiton do Prado Carneiro.

por Camila Pierobon

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

da Juréia a Barra do Ribeira

Meados da década de 80: chegada da família do Prado na Barra do Ribeira, violentamente expulsos do sítio onde moravam por uma política de preservação ambiental do governo do Estado de São Paulo que criou a Estação Ecológica Juréia-Itatins.

Motivo da criação da Estação Ecológica: preservação de um trecho de Mata Atlântica, já que 95% da floresta já havia sido destruída. Atitude nobre, não fosse a desconsideração pelas famílias que ali viviam há gerações e que através da agricultura, pesca e caça de subsistência mantiveram o local preservado.

Houve discussões, brigas e lutas das famílias com o governo do Estado que muito sabiamente enfraqueceu a luta dos moradores contratando algumas das pessoas mais articuladas para trabalharem como guardas florestais a favor da política imposta pelo governo.

Jogados nas cidades arredores, alguns literalmente saíram amarrados de suas casas, viviam dificuldades ao se adequarem às novas condições. Não tinham habilidade para a pesca comercial de manjuba, mas tinham que pagar o aluguel. Parte dos homens passou a trabalhar como servente de pedreiro na construção de casas de veraneio e das mulheres como “guardadoras” de casas vazias mantidas pela classe média alucinada pelo consumo de duas ou três semanas por ano no litoral.

Alguns perceberam que estava errado, precisavam então de uma entidade oficial que desse condições para os moradores continuarem defendendo os interesses da população local. A família do Prado funda então a Associação dos Jovens da Juréia tendo melhor força para trabalhar por uma política de preservação e conservação ambiental mais justa e para manter e valorizar elementos simbólicos e materiais da cultura caiçara. Em 2009 a Associação conta com 42 associados, parte destes são ex-moradores da Juréia e parte moradores da Barra do Ribeira, além dos freqüentadores.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

terra e rural

foto: Camila Pierobon



Deliciosa a sensação de partida. Mistura de sonhos, não meu, apenas, mas de inúmeras pessoas que se realizariam nesta viagem, mistura de medos, ânsias, alegrias, tremores estomacais repentinos e flashes imaginários que afloram projetando possibilidades. O que vou encontrar nesta viagem?

Fugir da tradicional Castelo Branco e também da BR-116 foi a primeira escolha. Decidimos pela Raposo Tavares seguida pela SP-139.

Cruzar com pouquíssimos carros e algumas rurais trazia o sentimento infantil de que desbravávamos algo inexplorado. Pelo caminho, que em muitos pontos mal tinha as faixas amarelas, bicicletas, pessoas a caminho de algo, crianças, Serra de Paranapiacaba, acostamento nenhum.

Estrada tortuosa, nos alertava a placa. Terra, serra, árvores, temperatura que muda trazendo um geladinho com sol que reforça o cheiro da mata verde, nos ouvidos: Bethânia. Aroma de uva quando passávamos pelas vinícolas, jardins com hortênsias, pau de São João.

Mata Atlântica, impressão de intocada, Parque Estadual Carlos Botelho, manacás-da-serra, verde, verde samambaias, cigarras, sons-mato, borboletas, cuidado onça parda, bromélias, bicas, mirante, Vale do Ribeira, cachoeira, marias-sem-vergonha, flores brancas, flores vermelhas. Não fossem os dois carros que cruzamos nestes 40 km de terra seríamos os únicos. O bom da imaginação é que logo trabalhou para recuperar esta sensação. Alguns postes de redes de alta tensão que fazia com que eu me lembrasse de momentos da infância perto de meu pai.

Volta o asfalto, volta o calor.

Registros visuais de um tipo rural de vida que resiste sem saber. Plantações manuais, mangueira, vaca, galinha, mais bicicletas, campinho de terra, chapéu, fumo de corda, cachorro seguindo o dono, caixa d'água que vasa, facão, búfalos guiados pela mãe, menina e menino, pai na motocicleta. Rio Iguape sem mata ciliar, plantação de bananeiras.

Sol de fim de tarde que amarela o verde da estrada transpassando as árvores produzindo seqüências rápidas de sol e sombra e sol e sombra e verde-amarelo, uma cor que só existe neste momento do dia.

Jacupiranga, Pariquera-Açu, Iguape, Parque Estadual Campina do Encantado, Barra do Ribeira.

Chegamos.

Camila Pierobon